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O Cultivo da Percepção

  • Foto do escritor: 16MM
    16MM
  • 28 de abr. de 2020
  • 18 min de leitura

COMO PODEMOS nos aproximar de nossa verdadeira natureza – a centelha divina que há dentro de cada um de nós? Como podemos livrar-nos das sucessivas camadas de defesas e identificações que acreditamos ser nosso eu e aprender a confiar no apoio e na orientação de nossa Essência? Como podemos fazê-lo, não apenas num workshop ou num tranquilo retiro nas montanhas, mas em nossa vida diária? Como podemos deixar de lado o reconhecimento intelectual do que é verdadeiro e passar a viver nossa verdade em todos os momentos? Como podemos fazer da vida nossa prática?

O Eneagrama nos ajuda a abandonar os mecanismos limitadores da personalidade para que possamos vivenciar mais profundamente quem e o que realmente somos. Mas isso não acontece de forma automática. Entender claramente os tipos de personalidade é o pré-requisito, embora a informação sozinha não baste para libertar-nos. Por mais que assim desejemos, não podemos dispor de nosso caminho rumo à transformação – não podemos cria-lo ou “maquiná-lo". Apesar disso, nossa participação é imprescindível: sem ela, nada acontecerá. Então, qual é o papel que temos em nossa própria transformação?

“Com a Boca na Botija”

As tradições sagradas do mundo inteiro concordam em frisar a importância de sermos testemunhas de nossa própria transformação. Devemos estar vigilantes, observando com atenção nossas atitudes e atividades. Se quisermos algum benefício desse mapa da alma, precisamos cultivar a arte da percepção e aprender a estar alerta em todos os momentos da vida, sem julgar nem justificar. Precisamos aprender a "pegar-nos com a boca na botija", ou seja, a perceber quando estamos agindo conforme os ditames da personalidade, a ver como nos manifestamos mecanicamente, abrindo mão da opção a cada instante. Quando conseguirmos notar o que estamos fazendo e apreender completamente e sem julgamentos nosso atual estado, os velhos padrões começarão a ruir.

A percepção é de importância vital para o trabalho de transformação porque os hábitos da personalidade são mais evidentes quando os vemos no momento em que se manifestam. Analisar as atitudes passadas é útil, mas não tanto quanto observar-nos como somos no momento presente. Por exemplo, certamente vale a pena entender por que tivemos uma discussão terrível com o parceiro ou ficamos irritados com um colega ou com um filho. Mas se nos "pegarmos com a boca na botija" enquanto estamos discutindo ou sentindo a irritação, pode acontecer uma coisa extraordinária. Nesse momento de conscientização, talvez possamos perceber que na verdade não queremos manter a atitude questionável à qual segundos antes estávamos tão aferrados. Talvez consigamos ver uma verdade mais profunda sobre aquela situação – por exemplo, que aquilo que tanto queríamos provar era apenas uma tentativa de justificar-nos ou, pior ainda, um pretexto para vingar-nos de alguém. Ou que as “piadinhas” com que tanto nos divertíamos eram apenas uma tentativa de evitar a tristeza e a solidão.

Se conseguirmos levar em frente essa decisão, nossa percepção vai continuar a aumentar. Talvez no início fiquemos constrangidos ou envergonhados; talvez queiramos a todo custo parar no meio do caminho ou distrair-nos de alguma forma. Mas, se atentarmos para o desconforto, veremos que surge algo mais: algo mais verdadeiro, capaz de fazer-nos sentir com extraordinária força a nós mesmos e o que está à nossa volta. Esse "algo mais" tem força e compaixão, paciência e sabedoria, liberdade e valor: ele é quem nós na verdade somos. Ele é o "Eu” que vai além do nome, que não tem personalidade, que é nossa verdadeira natureza.


O Despertar

A percepção pode não apenas mudar sua vida; ela pode salvá-la. Muitos anos atrás, uma grande ponte de uma importante rodovia interestadual ruiu numa noite de tempestade. Vários trechos da ponte caíram no rio, deixando os motoristas, desprevenidos, expostos a risco de vida em meio à chuva torrencial e à confusão da tempestade.

Um motorista atento viu o que ocorrera e conseguiu parar a poucos metros da cabeceira da ponte, salvando-se da morte certa no rio que corria a mais de 100 metros abaixo de seus pés. Ele arriscou a própria vida correndo em direção aos carros que se aproximavam, tentando freneticamente avisar os demais motoristas acerca do perigo que corriam. Nesse momento, um carro com cinco rapazes passou. Eles viram o homem que gesticulava feito louco em sua direção, mas certamente pensaram que ele estava buscando ajuda para seu próprio carro que quebrara. Rindo, fizeram-lhe um gesto pouco gentil e arrancaram a toda velocidade. Segundos mais tarde, lançavam-se ao rio e morriam, todos os cinco.

Do nosso ponto de vista, poderíamos dizer que a personalidade os matou. Desprezo, hostilidade, bravata, jactância, falta de desejo de ouvir ou falta de compaixão – qualquer um de vários impulsos poderia ter sido a razão da decisão do motorista de não parar. Algum hábito, alguma característica de sua personalidade, falou mais alto num momento decisivo, com trágicos resultados.

Entender até que ponto confiamos nossa vida aos mecanismos de nossa personalidade e o risco que corremos fazendo-o já é um grande progresso. Muitas vezes, é como se um bebê de 3 anos de idade tomasse por nós decisões cruciais. Quando entendemos a natureza dos mecanismos da personalidade, passamos a ter uma opção quanto a identificar-nos com eles ou não. Se não temos consciência deles, logicamente não há possibilidade de optar. Porém, ao percebermos o quanto somos integrantes do Tipo Cinco, ou Dois, ou Oito, temos a oportunidade de não agir irrefletidamente, como um simples autômato do tipo.

Gurdjieff e outros mestres espirituais disseram repetidas vezes que nosso estado de consciência normal é uma espécie de "sono". Isso pode parecer estranho, mas, no que diz respeito ao nível de consciência que podemos atingir, nosso estado normal está tão distante da vivência direta da realidade quanto o sono está da vigília. Entretanto, sabemos o quanto os sonhos nos parecem reais enquanto estamos dormindo. Quando acordamos e percebemos que estávamos sonhando, nossa relação com a realidade se altera. A noção de quem somos ganha outro foco.

O despertar do transe da personalidade se processa de forma muito parecida. Perguntamo-nos: “O que é isso, afinal? Onde é que eu estava há um minuto?" É possível que fiquemos surpresos ao constatar o quanto estávamos perdidos, mesmo que não nos apercebêssemos disso. Se alguém nos tivesse perguntado se estávamos despertos naquele momento, teríamos respondido que sim. Mas, desta nova perspectiva, vemos que não. Talvez descubramos aí que passamos partes inteiras de nossa vida "dormindo".

A Visão Consciente
Pare um instante para olhar o local em que se encontra neste exato momento. O que você havia registrado dele? Há alguma coisa que nunca tenha visto antes? Olhe de verdade. Não parta do princípio de que já sabe tudo que há nele. Enquanto olha ao seu redor, consegue sentir seu próprio corpo? Pode sentir qual é sua postura enquanto observa? Percebe alguma diferença entre a noção que tem de si agora e a que tem normalmente?

O Que é Percepção?

Usamos muito a palavra percepção, e ela de fato é muito importante em vários métodos que visam ao crescimento psicológico e espiritual. Apesar disso, é difícil dar-lhe uma definição adequada. Talvez seja mais fácil defini-la pelo que ela não é do que pelo que é. Por exemplo, podemos dizer que a percepção não é raciocínio, não é sentimento, não é ação, não é intuição e não é instinto, embora possa abarcar uma ou todas essas coisas.

Mesmo o raciocínio mais ativo e concentrado não é a mesma coisa que a percepção. Por exemplo, podemos estar pensando sem parar no que escrever neste capítulo e, ao mesmo tempo, perceber nossos próprios processos de raciocínio. Em outra ocasião, podemos perceber que estamos pensando numa reunião de trabalho que está para ocorrer ou ensaiando mentalmente uma conversa com alguém enquanto caminhamos pela rua. Em geral nossa percepção está tão voltada para nossa conversa interior que não nos damos conta de que somos algo à parte dela. Com um pouco mais de percepção, porém, conseguiremos sair de nossa conversa imaginária e observá-la.

Da mesma forma, podemos perceber melhor nossos sentimentos e conscientizar-nos deles. Podemos “ver-nos" justo no momento em que nos sentimos irritados, entediados ou solitários. Quando não estamos tão atentos, identificamo-nos com um sentimento e não vemos que ele é de natureza temporária: pensamos que somos e não que estamos frustrados ou deprimidos. Quando a tempestade passa, percebemos que aquele sentimento na verdade era transitório, mesmo que ele tivesse sido para nós a própria realidade enquanto estávamos entregues a ele. Por outro lado, quando estamos conscientes de nossos sentimentos, observamos claramente seu surgimento, seu impacto sobre nós e seu desvanecimento.

Podemos também ter uma maior percepção do que estamos fazendo das próprias sensações do corpo em ação e em repouso. Independentemente de isso poder ser bom ou mau, nosso corpo aprendeu a fazer muitas coisas no piloto automático. Por exemplo, somos capazes de dirigir e conversar ao mesmo tempo. Podemos estar pensando no que vamos dizer em seguida enquanto nos preocupamos com o horário de chegada. Enquanto isso, o corpo empreende todas as complicadas ações necessárias a direção do carro. Tudo isso pode se processar automaticamente e sem muita percepção, ou com percepção de uma parte ou de tudo que ocorre.

Cada momento nos coloca diante da possibilidade de expandir nossa percepção – com muitos benefícios:

• Quando relaxamos e deixamos que a percepção aumente, ficamos menos presos ao que quer que seja que possa atrair-nos a atenção. Se sentíamos medo ou ansiedade ou estávamos perdidos em fantasias e devaneios, ganharemos objetividade e perspectiva em relação ao que estamos fazendo. Por conseguinte, sofreremos menos.

• Uma maior percepção nos permite colocar mais de nós – e, assim, mais recursos – nos problemas e dificuldades que possamos estar enfrentando. Seremos capazes de novas soluções, em vez de velhas reações baseadas nos mecanismos de nossa personalidade.

• Uma maior percepção nos abre para um verdadeiro relacionamento com as pessoas e com o mundo que nos cerca. O prazer e a surpresa de cada novo momento passam a alimentar-nos e enriquecer-nos. Mesmo as experiências que normalmente consideraríamos desagradáveis ganham um novo sabor quando as vivenciamos com percepção.

Além disso, usamos com muita frequência a palavra ver, como, por exemplo, na frase: "É importante que vejamos os mecanismos de nossa personalidade". Contudo, é preciso esclarecer o que queremos dizer com essa palavra, da mesma forma que com a palavra percepção. Particularmente, é vital que compreendamos o que é que "vê" em nós. Todos sabemos muito bem tecer comentários a nosso próprio respeito e analisar nossas experiências. Nesses casos, uma parte de nossa personalidade está criticando ou comentando outra parte, como se dissesse: "Não gosto dessa parte de mim" ou "Acabo de fazer um belo comentário", e assim por diante. Esse tipo de comentário interior não costuma levar a nada além de inflação, esvaziamento e empobrecimento da estrutura do ego – e, finalmente, a uma guerra interior. Não é esse tipo de “visão" que queremos cultivar.

"Ver" não é tampouco uma compreensão puramente intelectual. O intelecto certamente tem sua parte; não queremos insinuar que não precisamos da mente no processo de transformação. Mas a parte de nós que vê é algo mais onipresente e, no entanto, fugidio. É algo que às vezes é chamado de testemunha ou observador interior: nossa percepção plena, viva, aqui e agora, capaz de apreender experiências em vários níveis diferentes.

Aprender a “Observar e Deixar de Lado”

Uma das habilidades mais importantes que precisamos cultivar ao embarcar na jornada interior é a de "observar e deixar de lado" os hábitos e mecanismos da personalidade que nos aprisionam.

Nossa máxima é enganosamente simples. Ela significa que precisamos aprender a observar-nos, vendo o que surge em nós a cada momento, bem como o que nos distrai do aqui e agora. Devemos simplesmente observar o que encontrarmos, seja ele agradável ou não. Não devemos mudá-lo nem nos criticar pelo que foi descoberto. Quanto mais plenamente presentes estivermos em relação a tudo que encontrarmos em nós, mais flexíveis se tornarão as restrições impostas pela personalidade e mais a nossa Essência poderá manifestar-se.

Ao contrário do que pode crer o ego, não cabe a nós nos reparar nem nos transformar. Com efeito, um dos maiores obstáculos à transformação é a ideia de que podemos consertar-nos". Ela naturalmente levanta algumas questões interessantes. O que achamos que precisa ser consertado e que parte de nós se arroga o direito de consertar a outra parte? Que partes são o juiz, o júri e o réu, respectivamente? Quais os instrumentos de punição ou reabilitação e que partes de nós os aplicarão a que partes?

Somos programados desde a mais tenra infância a acreditar que precisamos nos superar, nos esforçar mais e desconsiderar as partes de nós mesmos que as demais partes não aceitam. Nossa cultura e nossa educação lembram-nos constantemente que poderíamos ser mais bem-sucedidos, desejáveis, seguros ou espiritualizados se mudássemos alguma coisa em nós. Em resumo, aprendemos que devemos ser diferentes do que realmente somos, com base em alguma fórmula recebida pela mente. A ideia de que basta descobrirmos e aceitarmos quem na verdade somos contradiz quase tudo que nos ensinaram.

Sem dúvida, se estivermos fazendo alguma coisa prejudicial – como abusando de álcool e drogas, estabelecendo relacionamentos destrutivos ou dedicando-nos a atividades criminosas –, será necessário parar para que possamos dar início ao trabalho da transformação. Mas o que geralmente nos permite mudar não é arenga nem punição e sim o cultivo da percepção, tranquila e concentrada, para que possamos ver o que nos está induzindo ao que é prejudicial. Quando percebemos não só os maus hábitos, mas também as partes de nós que gostariam de ver-nos pelas costas, algo inteiramente novo entra em jogo.

Quando aprendemos a estar presentes na vida e a abrir-nos para o momento, começam a acontecer milagres. Um dos maiores é a possibilidade de abandonar num minuto um hábito que nos atazanou a vida inteira. Quando estamos realmente presentes, podemos renunciar a velhos hábitos porque já não somos os mesmos. O milagre que podemos ter por certo é o milagre de ver a cura de nossas mais antigas e profundas feridas pela ação da percepção. Se usarmos este mapa da alma para seguir até o fundo do coração, o ódio se transformará em compaixão; a rejeição, em aceitação; e o medo, em maravilhamento.

Lembre-se sempre que, além de ser um direito, é seu estado natural ser sábio e nobre, amoroso e generoso, estimar a si mesmo e aos outros, ser criativo e renovar-se constantemente, ter com o mundo um compromisso de reverência e entrega, ter coragem e contar consigo mesmo, regozijar-se e realizar-se, ser forte e potente, gozar de paz de espírito e presenciar o eterno mistério da própria vida.

A Identificação e o Observador Interior

A medida que ganharmos experiência de presença e auto-observação, notaremos o desenvolvimento de uma faceta aparentemente nova de nossa percepção: uma profunda capacidade de "testemunhar" mais objetivamente nossa própria experiência. Como já dissemos, essa faceta da percepção é denominada de observador interior, a qual nos permite observar – simultaneamente e sem comentários ou julgamentos – o que está ocorrendo dentro de nós e à nossa volta.

O observador interior é necessário à transformação devido a um mecanismo psicológico que Gurdjieff chamou de "identificação", o qual é um dos meios principais de que dispõe a personalidade para criar e sustentar sua realidade.

A personalidade pode identificar-se com praticamente qualquer coisa – uma ideia, um corpo, um anseio, um pôr-do-sol, um filho, uma canção. Ou seja, em qualquer momento no qual não estejamos plenamente despertos e no presente, nosso senso de identidade provém daquilo a que estejamos atentos. Por exemplo, se estivermos preocupados, concentrando-nos numa reunião que está por acontecer, é como se já estivéssemos vivendo a reunião (embora seja uma reunião imaginária), em vez de viver o que realmente está acontecendo no momento. Ou, se estivermos identificados com uma reação emocional – por exemplo, a atração por uma pessoa é como se nos tornássemos essa atração. Ou, se nos sentirmos traídos por uma crítica voz interior, não podemos nos separar dessa voz.

Empurrões Espirituais

Independentemente de seu tipo, há determinadas coisas que você pode fazer para dar um "empurrão" em seu crescimento pessoal e espiritual. Abaixo, uma lista de áreas problemáticas relacionadas a cada tipo, embora todos nós nos vejamos diante delas de vez em quando. Portanto, se quiser avançar em seu trabalho interior, atente o mais que puder para os seguintes padrões:

• Fazer juízos de valor, condenar a si e aos outros (Um) • Entregar aos outros o que para si tem mais valor (Dois) • Tentar ser diferente do que realmente é (Três) • Fazer comparações negativas (Quatro) • Interpretar demasiadamente a própria experiência (Cinco) • Depender do apoio de algo exterior a si mesmo (Seis) • Prever o que fará em seguida (Sete) • Tentar forçar ou controlar a própria vida (Oito) • Insistir em não se deixar afetar pelas próprias experiências (Nove)

Quando tranquilizamos a mente, mesmo que seja só um pouco, percebemos o quanto nossos estados flutuam de um momento para o outro. Num instante estamos pensando sobre o trabalho, no outro vemos alguém cruzar a rua que nos faz lembrar um antigo amor. Momentos depois, estamos lembrando de uma canção dos tempos de colégio, até que passa um carro e faz espirrar em cima de nós a água de uma poça. Imediatamente sentimos raiva do idiota que estava dirigindo e não pensamos em outra coisa até que percebemos que só um chocolate nos fará sentir melhor. E por aí vai. A única coisa que não muda é a tendência da personalidade a identificar-se com cada um dos sucessivos estados.

A percepção se expande e contrai como um balão, mas a identificação sempre nos torna menores. Talvez já tenhamos percebido que, quando estamos identificados com alguma coisa, nossa percepção do ambiente imediato diminui enormemente. Temos menos consciência dos outros, do meio ambiente e do nosso próprio estado de espírito. Simplificando, quanto mais identificados estivermos, mais contraída estará nossa percepção – e mais distantes estaremos da realidade.

Continuum de Percepção
Para este exercício, você precisará de um relógio e, se possível, um gravador. Escolha um local onde possa sentar-se confortavelmente e observe-o. Por cinco minutos, acompanhe o melhor que puder sua própria atenção, dizendo o nome de todas as coisas em que reparar. Você poderia dizer, por exemplo: "Estou percebendo a forma como a luz incide sobre a parede. Agora observo que gostaria de saber por que olhei para a parede. Percebo que estou contraindo meu ombro direito e que estou me sentindo nervoso" e assim por diante. Você pode gravar suas observações ou fazer este exercício com outra pessoa. Seja como for, mesmo que não faça nem uma coisa nem outra, veja se consegue discernir algum padrão específico em sua forma de perceber. Você se concentra mais nos pensamentos? No ambiente? Nas sensações? Nos sentimentos e reações? Há recorrência de algum tema?

Com o tempo, a identificação com um determinado conjunto de qualidades (como a força, a empatia, a tranquilidade ou a espontaneidade, para citar apenas algumas) se fixa e a noção de eu característica de nosso tipo se estabelece. Os sentimentos e estados que constituem nossa noção de eu são aqueles que acreditamos necessários à realização de nosso Desejo Fundamental. Quanto mais identificados com essa noção de eu, mais presos nela ficamos e mais esquecidos de que existem outras opções e outros modos de ser. Começamos a crer que somos esse padrão. Concentramo-nos apenas em determinadas qualidades do total de nosso potencial humano, como se disséssemos: "Estas qualidades são minhas, mas aquelas não. Sou assim, não assado". Dessa forma, criamos uma auto-imagem, uma autodefinição – um tipo de personalidade previsível.

O Medo Fundamental do Tipo Oito, por exemplo, é o de ser magoado ou controlado por outras pessoas ou pela vida e o seu Desejo Fundamental e o de proteger se e defender-se. Proteger-se e contar consigo mesmo são necessidades humanas universais, já que todos precisamos proteger-nos física e emocionalmente, mesmo que não sejamos do Tipo Oito. Os jovens desse tipo, porém, começam a concentrar-se nas qualidades que encontram em si que os ajudarão nessa tentativa de proteção. Eles descobrem então sua força, sua perseverança, sua firmeza e sua força de vontade e começam a usá-las para desenvolver e reforçar a identidade de seu ego.

O Medo de Estar Presente

É inevitável que fiquemos ansiosos, pressentindo que algo incômodo possa surgir, quando nos mantemos abertos para nós mesmos. Isso ocorre porque estamos "abrindo o involucro" de nossa personalidade. Não devemos desanimar, pois um certo grau de ansiedade ao longo do processo de transformação é um bom sinal. Quando deixamos para trás nossas velhas defesas, começamos a vivenciar diretamente os sentimentos que evitamos a vida toda.

Isso explica por que é possível viver experiências espirituais gratificantes e, em seguida, voltar a estados reativos, negativos ou receosos. O processo de crescimento implica um movimento constante entre o abandono de antigos bloqueios, a abertura para novas possibilidades e o encontro de níveis de bloqueio mais profundos. Embora pudéssemos desejar que o crescimento espiritual fosse mais linear e pudesse ser obtido com um ou dois grandes progressos, a verdade é que se trata de um processo ao qual nos devemos submeter muitas vezes e em várias situações até que toda a nossa psique se reorganize.

O crescimento espiritual é também um processo que requer que sejamos delicados e pacientes. São comuns as reações de frustração, as expectativas preestabelecidas quanto ao crescimento e o estabelecimento de cronogramas para medir o progresso espiritual, mas nada disso adianta. Levamos muitos anos para construir as defesas do ego e não podemos esperar desmontá-las da noite para o dia. A alma tem sua própria sabedoria e não permitirá que vejamos nada a nosso respeito (muito menos que renunciemos ao que quer que seja) antes de estarmos realmente preparados para tal.

Quando se começa um trabalho como esse, é comum o receio de que estar presente seja simplesmente ficar parado, "olhando o próprio umbigo" ou olhando para o teto. Temos a ideia de que estar mais presentes nos impede de lidar com os problemas importantes da vida - seremos "aéreos", inúteis e incompetentes. Na verdade, o que ocorre é o contrário: ficamos mais atentos e nossos julgamentos e percepções, mais precisos.

Da mesma forma, muita gente pensa que, se estivermos mais presentes, perderemos toda a maturidade ou a qualificação profissional duramente conquistada. Mais uma vez, o que ocorre é o oposto: quando estamos presentes, podemos fazer tudo melhor que nunca; além disso, adquirimos novas capacitações muito mais facilmente porque nossa concentração aumenta. Quando estamos atentos, a inteligência age de maneiras surpreendentes, fazendo-nos ir direto à informação ou habilidade necessárias à resolução do problema que temos à nossa frente.

Num nível ainda mais profundo, temos medo de estar presentes e de revelar-nos na vida porque pensamos que isso nos fará reviver todas as feridas da infância. Temos medo de que, se ousarmos revelar nossa verdadeira natureza, ela não seja reconhecida ou amada, que ela possa ser rejeitada e humilhada, fazendo-nos vulneráveis ou levando as pessoas a temer-nos ou trair-nos. Temos medo de ser abandonados. Temos medo de que nossa preciosa alma seja desconsiderada ou machucada mais uma vez.

E, no entanto, quando nos revelamos completamente, ganhamos paz e espaço imensos, além de tranquilidade para viver. Descobrimos que estamos inteiros, vivos e ligados ao mundo que nos cerca. Não há por que não viver assim, a não ser pelas razões que a personalidade nos dá – razões com certeza parciais e interessadas.

A Percepção Leva à Presença

Se continuarmos com esse processo, atentando para o que é verdadeiro – para o que está acontecendo neste exato momento, começamos a notar que uma sutil Presença permeia todo o espaço que existe dentro e fora de nós. Ela é leve, delicada e prazerosa e pode dar ensejo ao surgimento de muita coisa boa. Assim, quando nos concentramos na vivência do momento presente, somos preenchidos pela Presença. E, na verdade, veremos que essa Presença é o que essencialmente somos.

O mais impressionante é que essa Presença sempre nos diz o que em nós nos impede de estar mais presentes. Quanto mais presentes estivermos, mais nos aperceberemos das partes de nós que não se relaxam, partes que ainda não ocupamos plenamente. Quanto mais conseguimos relaxar, mais conscientes ficamos do sutil movimento da Presença, preenchendo-nos e rodeando-nos. Talvez o melhor seja permanecer com essa impressão sem rotulá-la nem pensar em demasia a seu respeito. Com o tempo, o que é vago e sutil tornar-se-á mais claro e nítido, à medida que novas camadas do Ser se revelarem a nós.

A Presença irrompe em nossos devaneios e identificações o tempo todo. Porém, devido às estruturas criadas pela personalidade, não conseguimos fincar pé e permanecer presentes. Quanto mais fundo entrarmos no transe do ego, mais "carregados" se tornam os mecanismos de nossa personalidade, como se fossem imãs dotados de feroz e desesperada atração. Todavia, se nos sintonizarmos com a vibrante natureza da Presença e virmos o enorme investimento de energia de vida que fazemos nos "projetos" da personalidade, teremos uma saída. Ao mesmo tempo que não podemos simplesmente resolver estar presentes, sem essa resolução a Presença é impossível. Então como pode alguém que está imerso em transe sair do próprio transe?

É evidente que uma empresa tão heroica é quase impossível sem o apoio e os instrumentos adequados. Em capítulos subsequentes, veremos como um sistema de compreensão profunda como o Eneagrama e, mais que isso, a prática diária do cultivo da percepção e da Presença, podem contribuir para o despertar de uma pessoa. Além disso, nesses capítulos sugeriremos vários instrumentos e várias formas de apoio que podem funcionar como "despertadores" para o nosso transe. Quanto mais escutarmos esses “chamados", mais Presença teremos (e mais provável será que nos despertemos). Mas isso requer muita prática.

Não se engane: esse é um trabalho para a vida inteira. Porém, quanto mais momentos de despertar conseguirmos ter, mais momentum terá nosso processo de despertar: algo estará depositado em nós – um grão de areia, o núcleo de uma pérola – que não se perde quando retornamos ao estado normal. Para saber quando estamos despertos, há três características para as quais podemos atentar:

1. Vivenciamos plenamente nossa Presença enquanto seres vivos, aqui e agora. Sabemos que alguém está aqui; sentimos nossa substancialidade, nosso "ser", e assim cravamos os pés no momento. Além disso, isso ocorre não por estarmos imaginando-nos de um ponto de vista exterior, mas sim porque estamos dentro" da experiência, totalmente ligados às sensações do corpo, desde a cabeça até os pés. Não há nenhuma resistência à realidade do momento.

2. Absorvemos as impressões do ambiente externo e interno completamente e sem julgamentos nem reações emocionais. Somos capazes de observar os vários pensamentos e sentimentos que passam por nossa percepção sem nos prender a nenhum deles. Interagimos com a vida a partir da tranquilidade interior, não da ansiedade. Nossa atenção volta-se para o que está acontecendo no momento, sem sonhar com o passado nem fantasiar com o futuro ou qualquer outra coisa.

3. Participamos plenamente do momento, deixando-nos tocar pelas impressões à nossa volta, vivenciando intensamente a riqueza e a sutileza da vida. Somos sinceros, sem artifícios nem inibições. A cada instante, vivemos a identidade como algo inteiramente novo. Estamos sempre em busca de alguma fórmula, regra ou oração que resolva os problemas. Mas não há nada que substitua a Presença. Sem ela, não há nenhuma oração, meditação, mestre nem técnica neste mundo que possam nos transformar. É por isso que podemos passar anos e anos observando as práticas de nossa religião e, ainda assim, não conseguir personificar as nossas convicções. Podemos ter experiências extraordinárias e momentos em que nos sentimos livres dos grilhões da personalidade, porém, mais cedo ou mais tarde – e, em geral, muito mais cedo do que gostaríamos –, voltamos a viver como antes. Isso é assim porque não entendemos a importância vital da Presença: ela não é, nem pode ser, parte da personalidade ou de sua ordem do dia.

A boa notícia é que a Presença já está aí, mesmo que a percepção que temos dela tenha sido limitada por nossa preocupação com os estreitos interesses da personalidade. Quanto mais valorizarmos, cultivarmos e fortalecermos a percepção, mais claramente as qualidades mais profundas de nossa natureza Essencial se manifestarão.

(Traduzido de "The Wisdom of the Enneagram", de Don Richard Riso & Russ Hudson, por ~mamado frentista)

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